Padres casados vivem à margem da Igreja: 'É como se a gente não existisse'

Não é uma decisão fácil, você sofre bastante. Ninguém é ordenado padre pensando que vai deixar de exercer o sacerdócio.
A declaração é de Félix Batista, 69, um padre casado. Ele foi ordenado padre em 1984, na Arquidiocese de Olinda e Recife e, três anos depois, conheceu a esposa, Fernanda, com quem viria a ter dois filhos. Após os dois decidirem que queriam ficar juntos, ele deixou o ministério sacerdotal e pediu dispensa ao Vaticano.
Os padres casados —homens que, ao se apaixonarem, abandonaram o sacerdócio para viver a vida a dois— não são poucos. A Rumos, uma associação que reúne estes homens, conta hoje com 193 associados, mas estima que são cerca de 7.000 padres casados no Brasil.
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Eles afirmam que o casamento não é incompatível com a vida sacerdotal e contam que se sentem excluídos após deixarem o ministério.
Eu não queria ter essa vida dupla que muitos padres têm --ou têm mulher, ou são homossexuais. Não achava justo nem com a Igreja, nem com minha mulher. Então, depois de muito refletir, decidi deixar [o ministério].
Félix Batista
O celibato sacerdotal obrigatório é uma realidade que perdura na Igreja Católica há quase 900 anos. A prática foi imposta como regra desde o Segundo Concílio de Latrão —o décimo concílio ecumênico da Igreja Católica, realizado em 1139.
O padre que decide deixar de exercer o sacerdócio deve solicitar sua desvinculação ao Tribunal Diocesano, com desdobramento em Roma. Em seguida, é obrigado pelo Vaticano a uma carta de desligamento. Ao final do processo, o papa emite um certificado de dispensa.
Apesar de terem deixado o ministério, eles ainda são considerados padres —na Igreja Católica, não existe o conceito de "ex-padre". Uma vez ordenado sacerdote, o homem permanece um clérigo para sempre. A mesma lógica vale para pessoas que recebem os sacramentos do batismo ou crisma —não existe o conceito de "ex-batizado" ou "ex-crismado".
"Uma vez padre, sempre padre. Quando você não exerce mais o sacerdócio, é solicitado a Roma a dispensa das funções, mas não é abolido o sacerdócio", explica o teólogo e filósofo José Antônio Mangoni, professor de ciências da religião da Universidade do Estado do Pará (Uepa).
'Autoridade maior é minha consciência'
Patrocínio Freire, 49, ou pelo mesmo dilema e também optou por abandonar o ministério. Ele foi ordenado padre em 2005 e, três anos depois, reencontrou a esposa, Suzy, em meio aos trabalhos pastorais da paróquia —eles já se conheciam desde o ensino médio.
Ao contrário de Batista, Freire não teve filhos. Quando conheceu a esposa, ela era divorciada e tinha três filhos, de 7, 12 e 15 anos à época. Há ainda outra diferença entre os dois padres: Freire, apesar de ter se casado no papel, não pediu a dispensa ao Vaticano.
"Quando você pede o desligamento, você é obrigado a escrever uma carta ao papa dizendo que você não tem vocação para ser padre, e não concordo com isso. No ato da ordenação, eu estava convicto de que tinha vocação para o ministério", afirma Freire.
O padre que não recebe essa dispensa é visto como persona non grata dentro da Igreja. Em tese, ele não pode ir à missa, comungar e receber outros sacramentos, mas sigo exercendo minha religiosidade. A Igreja tem autoridade, mas a autoridade maior é a minha consciência diante de Deus.
Patrocínio Freire
Associação faz acolhimento a quem deixa ministério
Desde a década de 1990, Batista é ativo no Movimento das Famílias dos Padres Casados (MFPC), que surgiu em 1975 e foi formalizado como associação, sob o nome de Rumos, em 1986. Freire não é filiado à associação, mas tem simpatia pelo movimento.
Segundo a presidente da Rumos e coordenadora nacional do MPFC, Sônia Salviano, viúva do padre Francisco Salatiel, a associação tem basicamente duas frentes de trabalho: engajamento e acolhimento.
O grupo visa avançar no debate sobre o fim do celibato sacerdotal obrigatório, a partir de reuniões regulares com autoridades de igrejas locais, e conta com uma equipe de psicólogos e psicanalistas para acolher padres que pensam em deixar o ministério.
No mundo, o total de padres que deixaram o ministério é incerto, mas o presidente da Federação Latino Americana de Padres Casados, Sebastian Cozac, estima em 100 mil.
"Temos exemplos de grupos bem organizados", diz Sônia. "O grupo de Brasília segue bastante firme. Todo mês, nos reunimos na casa de um de nós, partilhamos alimentos e escolhemos um tema para abordar. Tentamos sempre convidar algum líder local que tenha simpatia pelo movimento para tentar avançar no debate."
Eventualmente, as associações de padres casados pelo mundo, incluindo a Rumos, também se reúnem para realizar encontros mundiais. A última reunião geral ocorreu no início da década de 2010, na Espanha, mas a ideia é que as assembleias voltem a acontecer com mais frequência. A próxima está marcada para 2027 e será sediada no Rio de Janeiro.
'É como se a gente não existisse'
Padres que deixaram o ministério não têm o mesmo tratamento do que aqueles que ainda exercem suas funções sacerdotais. Batista conta que, mesmo tendo pedido dispensa ao Vaticano e se regularizado perante a Igreja, ainda sofre com os comentários e olhares de julgamento.
"Eu sempre digo que nós somos os excluídos da Igreja. Quando se fala em inclusão na Igreja Católica, vêm à mente diversas categorias: mulheres, homossexuais, entre outras", afirma. "Não se fala do padre casado. É como se a gente não existisse."
Batista e Freire dizem que a Igreja é muito acolhedora enquanto se está no ministério, mas também cruel nos casos em que o padre opta por abandonar a vida sacerdotal.
Eles tiveram a sorte de atuar em congregações que estimulavam a formação acadêmica e, por isso, conseguiram se firmar no mercado de trabalho —Batista é jornalista aposentado e Freire é professor—, mas essa é uma exceção à regra, segundo afirmam.
Eles dizem que muitos padres ficam desamparados ao deixar o ministério. O sacerdote perde a estrutura que a paróquia lhe assegurava e precisa recomeçar a vida, muitas vezes do zero.
"Devo muito à Igreja, especialmente à congregação da qual participei. Sou muito grato por tudo o que ela me proporcionou", diz Freire. "Ao mesmo tempo, é uma instituição cruel. Afetivamente, é como se você não tivesse participado da Igreja por 25 anos."
'Peso do conservadorismo é grande'
Para Batista, o celibato sacerdotal obrigatório é uma "hipocrisia". Ele diz que há relatos de padres que se relacionam às escondidas, tanto com mulheres quanto com homens. E também defende que o matrimônio não é incompatível com a vida sacerdotal, até porque líderes religiosos de diversas religiões, como pastores e rabinos, têm permissão para se casar.
Segundo o teólogo José Antônio Mangoni, em praticamente todas as religiões, há regras com relação à conduta sexual. No cristianismo, essa questão é mais escancarada.
A explicação para isso remonta às ideias do filósofo grego Platão, na Antiguidade, que dava mais importância à alma do que ao corpo. Para ele, a alma é parte essencial e imortal do ser humano, enquanto o corpo é uma entidade temporária e mutável.
Ao contrário do que se possa pensar, a motivação por trás da imposição do celibato sacerdotal não está diretamente relacionada à renúncia do prazer sexual em nome do compromisso com a vida religiosa. Historicamente, a medida foi adotada para prevenir a corrupção e o nepotismo dentro da Igreja.
José Antônio Mangoni, teólogo e filósofo
"Antigamente, na época em que padres ainda podiam se casar, eles muitas vezes transferiam as riquezas da paróquia aos filhos quando morriam. Nesse sentido, o celibato obrigatório é uma medida disciplinar imposta para corrigir um problema histórico", acrescenta.
Como a Igreja vê a questão do celibato?
Em janeiro de 2019, o papa Francisco afirmou que "não concordava em permitir que o celibato fosse opcional", mas que considerava "algumas possibilidades para lugares muito remotos", como as Ilhas do Pacífico ou a Amazônia.
Em junho daquele ano, o Vaticano emitiu um documento que recomendava à Igreja Católica que considerasse ordenar homens casados em regiões remotas da Amazônia para suprir a escassez de padres nessas áreas.
A proposta assustou conservadores da Igreja, que temiam que isso pudesse levar a uma mudança no compromisso do celibato entre os padres, e foi rejeitada por Francisco em fevereiro do ano seguinte. Para Mangoni, não há perspectiva de que o assunto avance num futuro próximo.
"Francisco deu o pontapé no debate. Apesar disso, o peso do conservadorismo é muito grande", diz. "Não sei como Leão 14 vai encaminhar essa questão. Só sei que essa é uma discussão que terá de ser feita eventualmente, mais cedo ou mais tarde."
Procurada, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) disse que não comentaria os casos.