
Alexandre de Moraes flertou com a bagunça semântica, nesta segunda-feira, ao proibir os réus do chamado núcleo central da trama golpista de conversarem entre si durante o interrogatório na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal.
O bate-papo foi abolido. Mas os cumprimentos estavam liberados. Moraes deixou assim um campo aberto às fronteiras da interpretação que por pouco não viraram um julgamento à parte. Não teve advogado que não suou frio ao ver os antigos colegas de farda se reunirem no tribunal. Tanto esforço para evitar a prisão dos clientes e de repente tudo poderia ir por água abaixo se alguém dissesse, entre tapas nas costas, "como vai", "como vem", "e aquele churrasco, quando sai?".
Mas a ordem, no fim das contas, serviu como contenção ao encontro mais esperado do dia: o de Jair Bolsonaro (PL) e seu ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, o primeiro réu a ser interrogado pelos ministros.
Ambos só estavam lá porque o ex-funcionário resolveu contar o que sabia sobre as andanças do então chefe para evitar a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao fim das eleições de 2022.
E se agora ninguém especula o que Bolsonaro disse ao pé do ouvido de Mauro Cid é porque Moraes só liberou o tapinha nas costas e as continências (pois público-alvo) como cumprimento.
Bolsonaro quis tanto adiar esse reencontro que ou dez minutos no banheiro vendo vídeos na internet. Do quê? Não sabemos. Fato é que Mauro Cid até gaguejou, mas não se negou a dizer em público o que contou no escurinho da sala de depoimento da PF. Os outros sete réus da trama ouviam com atenção o rapaz tão solícito —como ele mesmo se descreveu— entregar o ex-chefe. O ex-ministro da Defesa Paulo Sergio Nogueira, por exemplo, estava com cara de quem não almoçava desde o governo Bolsonaro. E parecia querer palitar os dentes com os ossos do depoente.
Quem parecia indiferente era o general Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional que cochilou algumas vezes durante a audiência. Era ele, vale lembrar, o responsável pela segurança do presidente. Para ver o risco que o chefe correu nesses anos todos.
No momento mais tenso, o tenente-coronel precisou confirmar a Moraes que, sim, os chefes chegaram a cogitar prender o ministro do STF para encontrar caminho livre para o golpe. Isso na versão mais enxuta do plano. Na mais expandida a ideia era prender Moraes e os outros dez ministros da corte. Entre cortar a bola e manter a fama de mau, Moraes não pensou duas vezes. "[Para] o resto foi concedido um habeas corpus", ironizou o ministro.
Risos.
Em outro momento, o advogado Demóstenes Torres, defensor de Almir Garnier, pediu ao ministro para ter o seu "momento Alexandre de Moraes". Ele citava os momentos em que o ministro, quando irritado, pede objetividade aos interrogados e questiona se eles confirmam o que disseram em depoimento: "sim ou não?" Foi o que fez o advogado ao ser autorizado a "imitar" o relator. "Mais alguma coisa?", questionou o ministro, antes de entrar na brincadeira e perguntar: "Sim ou não?".
Moraes também se mostrou curioso para saber do depoente o que falavam dele em reuniões que, segundo parte dos réus, eram meros encontros despretensiosos à base de guaraná e salgadinho. Soube assim que era tão xingado em privado quanto em público.
Outro ponto alto foi quando o ministro improvisou um momento "Para quem você tira o chapéu", de Raul Gil. Ele citava nomes a Mauro Cid e perguntava quais compunham a chamada ala radical do plano.
"E o Alexandre Ramagem, era radical?"
"Não senhor."
"E o [almirante Almir] Garnier."
"Esse eu classifiquei, sim, como radical."
"Radical, radical?"
"Sim senhor."
"E o Braga Netto?"
"Nesse momento ele estava entre os moderados."
"E o Heleno?"
"Moderado", respondeu Cid, para surpresa da plateia. (Em defesa do delator, Moraes não entrou em detalhes sobre se o réu era moderado também quando estava acordado).
Quem achava que Cid estava na pior, a maior resposta aos inimigos e inimigas foi aparecer na TV bronzeado, seguro e sem medo de cara feia (a/c ministro Paulo Sergio).
Bolsonaro, a essa altura, certamente se questiona como pode confiar em alguém que considerava como um filho. Não é pouco para quem é pai de Eduardo, Flávio, Carlos e Jair Renan Bolsonaro. Se escapar dessa, o ex-presidente vai ter que colocar o RH para trabalhar até escolher um secretário que guarde segredos (e também um chefe de GSI mais vigilante). Ou —o que seria mais prudente— pode tomar outros caminhos. Por exemplo, evitar tramar golpe de Estado e colocar o ajudante de ordens para fazer o meio campo com as alas radicais e moderadas da trama.
*Matheus Pichonelli é jornalista e cientista social, com agens por Folha de S.Paulo, iG, Carta Capital, Yahoo!, Intercept Brasil e UOL, além de colaborações para a revista Piauí e o jornal O Globo. Atualmente é roteirista do ICL Notícias.